carros: uma ameaça ao convívio em sociedade
Viver em sociedade é uma arte bastante complexa. Tão complexa que ainda não a dominamos. Dizemos uns aos outros que sim, mas é uma ilusão. O caos do trânsito é uma das maiores provas disso. Escrevo isso com os exemplos de São Paulo e Belo Horizonte em mente, as cidades em que vivi. Mas sintam-se livres para aplicar a suas realidades.
Sociedade
Um dos grandes problemas de viver em sociedade é separar a esfera pública da esfera privada. Claro que existem momentos em que elas se cruzam, e esses são os mais delicados. Para os que não entendem essa diferença, tenho um exemplo crasso: Se você é mordido pelo cachorro da sua sogra, trata-se de um problema privado. Se você é mordido por um cão solto na rua, é um problema público.
Uma solução para o primeiro exemplo seria cortar relações com a sogra, ou terminar o namoro. Em casos extremos, sacrificar o cachorro. Já no segundo caso, recomendo chamar a carrocinha, ou até mesmo adotar e adestrar o cão.
Experimento mental
Mas o que fazer quando o problema é transporte? A quem reclamar? Façamos um experimento mental digno de Newton:
O Sr. Andante quer de ir de A a B e não consegue, pois não existe um meio de transporte público para isso. Ou até existe, mas não é conveniente o suficiente para seu grau de exigência. A solução “rápida” e “fácil”? Comprar um carro, claro. Sr. Andante tornou-se então, o Sr. Volante.
Assim, ele sai serelepe todos os dias para trabalhar com seu libertador automóvel. O tempo passa, e todos os seus vizinhos percebem que têm o mesmo problema. Alguns nem tem o mesmo problema, mas vêem o Sr. Volante passeando feliz e ficam com inveja. Cansam de pegar ônibus. E com o tempo, todos eles compram seus carros.
É então que acontece isso com eles e todos aqueles que fazem o trajeto entre A e B:
E o que era algo prazeroso e prático para alguns torna-se um inferno para muitos. Não apenas para eles, mas também para aqueles que por opção ou não, ainda tomam outros meios de transporte. O problema de falta de transporte público não foi resolvido e criou-se um segundo, o de volume de tráfego, que intensifica o primeiro.
Individualismo e a perda do prazer
O mais interessante é que quando atingimos recordes de congestionamento, todos os motoristas ficam indignados, como se os engarrafamentos fossem causados por todos os outros carros menos o deles. Gostaria muito de ter esse carro solúvel.
Certa vez, estava em um ônibus e o motorista indignado xingava todos os motoristas solitários que atrapalhavam o trajeto. Vamos colocar em perspectiva a mentalidade de um motorista solitário que fecha ou corta um ônibus:
“Há 30 pessoas naquele ônibus. Mas quem tem prioridade aqui sou eu. Eu preciso chegar no meu destino mais rápido do que elas.”
Um mundo regido pelo transporte individual é um mundo regido pela mentalidade do “eu é que importo”. Não há incentivo ao crescimento e cooperação. Apenas competição.
É curioso, ou se preferirem, estúpido, que para locomover uma pessoa de cerca de 70kg, o meio mais desejado seja um objeto de quase uma tonelada movido a um motor de combustão interna que solta poluentes e gera altos gastos em manutenção. E quanto maior, melhor. Também é preciso ter um motor potente, muitos opcionais distrativos e customizações infinitas. O carro deve refletir a personalidade de seu dono. Minha roda deve expressar quem eu sou.
Mas na hora do “vamo-ver”, congestionamentos não discriminam o quanto você gastou no seu transporte:

Segundo Marco Gomes: O carro a esquerda é uma Ferrari, parada no congestionamento igual todos os outros carros.
Quando colocamos o problema desta maneira, sempre surge alguém para se fazer de vítima “ah, mas eu preciso do carro porque bla bla bla” -- Não me interessam suas histórias pessoais. Não estou aqui para falar de excessões, mas sim de regras. Regras para conviver em sociedade. Claro que há casos em que o carro é uma ferramenta útil. E sim, ele é um objeto interessante. Eu gosto de carros, como objetos. Eu tenho um. Não o uso para trabalhar, pois eu quero ter prazer em dirigir, e dirigir todos os dias não me dá prazer algum.
Heróis subsidiados do egoísmo
Sou afortunado, vivo em uma região relativamente abundante em transporte público, mesmo que não tanto quanto eu gostaria. Posso sempre pesquisar uma alternativa a usar meu carro, e geralmente ela existe. E muitas das pessoas que gostam de dizer “mas transporte público é uma merda” ou “mas eu preciso usar o carro porque bla bla bla” também têm a mesma sorte, o que elas não têm é coragem de admitir que:
- Têm medinho de andar de transporte público
- Acham transporte público algo pobre e indigno
- Têm preguiça
Ou em casos extremos:
- São burras
- São egoístas
Nossa suposta elite não é capaz de entender que não está solucionando problema algum. Estão apenas solucionando o problema individual delas, e agravando outro no processo. Restam aos sem opção/dinheiro seguir usando um sistema deficitário cujos defeitos são agravados por aqueles que não pensaram coletivamente.
Não que os usuários de transporte público sejam heróis. A maioria deles está lá por falta de opção mesmo. Caso contrário juntariam-se aos Volantes e continuaram agravando a situação sem parar para pensar sequer um minuto. E o que as autoridades fazem? Gastam bilhões para continuar incentivando o transporte motorizado individual. Literalmente subsidiando a propriedade privada. Se numa via não se pode passar bicicletas, pedestres ou ônibus restam apenas os carros particulares.
Gosto bastante de ouvir motoristas reclamando da “indústria de multas“, como se fossem vítimas de uma gangue de agentes do governo. Ora bolas, você cometeu uma infração ou não? Se não, recorra, se sim, cale a boca e pague a multa. Poucos lembram-se que dirigir não é um direito, é uma concessão. Que pode, e deve, ser suspensa caso o dono dela não se comporte. Ter um sistema de transporte público eficiente é um direito, um que poucos cobram, preferindo acovardar-se dentro de seus carros.

Só pague a multa de estacionamento. Não fique tão revoltado. Você não está lutando pelos direitos civis. Você parou em fila dupla.
Esse tipo de reclamação egoísta é o retrato de uma classe privilegiada acostumada a dar seus jeitinhos mas completamente intolerante aos erros alheios.
Um exemplo de que pode funcionar
Ainda não está convencido de que transporte público é melhor que privado? Conheça Top Gear. Um programa da BBC sobre carros, onde uma das atividades preferidas é colocar um carro contra outra forma de transporte. No exemplo abaixo, um Nissan GTR contra o transporte público japones (englobando trens, ônibus, balsa e teleférico) atravessando o Japão:
Pra quem não quer ver todas as partes eu digo: O carro ganha por 5 minutos. Mas vale lembrar que ele fez isso ultrapassando o limite de velocidade e com um trajeto 240 kilometros menor.
Se você quiser ver mais, ainda temos um Peugeot 207 perdendo de praticantes de Parkour:
E um Fiat 500 perdendo de ciclistas:
Claro que são extrapolações, mas são divertidas.
O individual vs o coletivo
Problemas coletivos não são solucionados por iniciativas individuais. Resolver o seu problema não resolve O problema. A solução para o transporte é uma rede eficiente, educação consistente e fiscalização -- tanto dos motoristas privados quanto do sistema público. Dizer que o sistema atual é uma merda e continuar atopetando as ruas de carros e motos não vai melhorar a situação, é preciso cobrar das autoridades, e cobrar com causa -- reclamar do carro vizinho não vai fazer o transito melhorar, reclamar da falta de ônibus ou metrô, possivelmente.
Reflita: você precisa mesmo do seu carro todos os dias? Não existe outro meio de chegar onde você quer? Enquanto habitantes de bairros distantes sofrem para ir de casa ao trabalho, moradores da Vila Mariana vão de carro ao shopping almoçar.
Uma solução que proponho é tratarmos socialmente os motoristas solitários (aqueles que conduzem seus carros apenas para si mesmos, indo e vindo do escritório a 6km de distância, ou seguindo para alguma banalidade) da mesma maneira que nossa sociedad têm tratado os fumantes, ou os bêbados. Afinal, não estão esses motoristas basicamente externalizando as consequencias de seus atos como eles?
Por que não coibir, ou até mesmo proibir, o trajeto de carros particulares com apenas um ocupante? -- Salvo necessidades especiais como idosos, deficientes e etc. Aproveitemos para banir todos os carros oficiais de qualquer repartição pública. Regulamentar de uma vez por todas as profissões e empresas de entrega?
Você pode achar essas medidas extremas, mas não estamos além do extremo do aceitável em termos de qualidade de vida quando o assunto é o direito básico de ir e vir? Falta de serviço adequado, soluções gambiarrescas, lógicas deturpadas, falta de senso coletivo e altos níveis de stress que com certeza fazem tão mal à saude quanto fumo passivo.
Temos que botar a boca no trombone. Reclamarmos a todos que tem ouvidos. Encher o saco de individuos, instituições e autoridades. Atacar por todas as frentes, pedindo não apenas uma rede decente de transporte em nossas cidades, mas também uma melhor educação e fiscalização do trânsito, leis ainda mais rígidas e mais táxis nas ruas com tarifas não insultantes.
Como referência de que não estou louco em minhas declarações, encerro esse texto voltando ao movimento dos direitos civis, mais especificamente a Martin Luther King Jr, que dentre muitas coisas sábias, disse:
“Lamentably, it is an historical fact that privileged groups seldom give up their privileges voluntarily”
Lamentavelmente, é um fato histórico que grupos privilegiados raramente abrem mão de seus privilégios voluntariamente.
“Injustice anywhere is a threat to justice everywhere.”
Injustiça em qualquer lugar é uma ameaça à justiça em todo lugar.
“Just as Socrates felt that it was necessary to create a tension in the mind so that individuals could rise from the bondage of myths and half-truths to the unfettered realm of creative analysis and objective appraisal, we must we see the need for nonviolent gadflies to create the kind of tension in society that will help men rise…”
Assim como Sócrates sentiu necessário criar uma tensão na mente para que individuos levantassem-se dos grilhões dos mitos e meias-verdades ao reino irrestrito da análise criativa e apreciação objetiva, nós devemos enxergar a necessidade de ações não-violentas para criar o tipo de tensão na sociedade que ajudará o homem a levantar-se…
Fonte (tradução por mim)
Leitura recomendada:
- Como nascem os congestionamentos
- Industria de multas?
- Desafio na cidade que se espalha
- O Custo de uma ponte estaiada
- Vauban, a Car-free town
As vezes eu volto eu vou de taxi e volto à pé para casa do escritório e, por incrível que pareça, as vezes demoro o mesmo tempo de carro que demoro andando, gastando mais combustível, ficando irritado e deixando de fazer uma agradável atividade física.
No inverno vou ver se vou mais dias à pé para o escritório (+- 6km da minha casa) o problema nesse calorzão é chegar todo suado! No inverno não vou ter esse problema.
Luba
24 Feb 10 at 01:56
Alguns meses atrás eu tentei caminhar a esmo por aí; me deparei com situações impensáveis. Querendo ir de uma cidade a outra, usando o que a natureza nos deu (pés) é impossível, porque viagens de longa distância são um privilégio de motorizados. Em alguns trajetos a polícia me parou e me obrigou a subir em seus carros, porque é “proibido caminhar”.
Felipe Iturrieta
24 Feb 10 at 05:58
Bonito, muito bonito o discurso. Mas utópico.
Por acaso você já usou transporte público para atravessar, por exemplo, de Guarulhos até a Lapa, na zona oeste de São Paulo, a trabalho, todo dia?
Pois bem. Adquirí uma síndrome do pânico por causa disso. Todo dia eu via uma discussão, todo dia eu era empurrado para dentro de um trem apertado. Já fui alvo de trombadinha, mesmo com minha mochila na frente do corpo, como mandam. Já me mandaram “para aquele lugar” por só ter encostado na pessoa. Já quase tomei porrada. Já ví uma menina quase ser violentada. Outra, acusando um cara e depois sair rindo do trem, enquanto um bando de valentões quase deram uma “coça” no coitado. Já caí no vão entre o trem e a plataforma na Luz, já fui empurrado de um lado ao outro do trem na Sé, sem conseguir ficar no vagão.
As pessoas podem dizer que é difícil pegar congestionamento, e tudo mais. Mas pergunte para quem faz esse tipo de trajeto todo dia, se ela não trocaria tudo isso que eu disse acima por uma poltrona individual com o ar condicionado ligado, e uma música que ela mesmo escolheu (não a música de um MPTudo ligado sem fone de ouvido, como costumam fazer em transportes públicos). Eu trocaria.
Alguns podem chamar isso de egoísmo, como você fez. Então vamos lá, o que me sugere? Que eu morra do coração, que seja espancado uma vez por mês ou que eu comece a andar armado dentro do trem para botar respeito, como já ví gente fazendo?
Concordo que esse quadro deveria mudar. Concordo que dirigir é uma concessão, não um direito. Concordo que tudo isso é culpa da falta de estrutura para transporte urbano, por conta desse governo corrupto e preocupado com a elite (já que é só a classe média – média/alta que consegue abrir um crediário para carros nesse país).
Concordo com sua utopia, no final das contas.
Mas não chame as pessoas que querem andar de carro de burras, por favor. Não desvalorize a ponto de falar sobre “medinho” ou frescura de achar indigno. Antes disso, dá uma passadinha na Sé, por volta das 17h30, e pega um metrô até a Penha. Imagina isso todo dia.
É, você também iria querer fazer esse caminho de carro.
Não adianta tentar obrigar quem anda de carro começar a usar transporte público, galera. NÃO CABE mais ninguém lá. Se vocês tem alguma dúvida a respeito, olhem esse vídeo filmado durante uma chuva em São Paulo:
http://www.youtube.com/watch?v=s7D-MEYg8qs&feature=email
Enquanto isso, o governo expande os metrôs. É verdade. Mas só para a Zona Sul, onde está o maior PIB da capital. Os trens “modernos” que a propaganda tanto fala, é da linha verde. Para os ricos.
Ao contrário do que você diz, nessa cidade, a burguesia usa bem melhor o transporte público que os pobres da zona leste, ou os coitados, como eu, que precisam sair de sua cidade para trabalhar.
Essa realidade também existe.
Pense nisso.
Thiago
24 Feb 10 at 14:07
Moro muito longe de onde trabalho, transporte público nem pensar. E trago lepi toque todo dia, se levar no onibus, metro ou trem seria assaltado
Jaboatão
24 Feb 10 at 15:37
Nossa, você colocou num artigo tudo que já pensei sobre o assunto na vida!!!
Parabéns! Estou espalhando pra todos os conhecidos!
Gran Kain
24 Feb 10 at 18:27
Ontem, em uma aula, discutíamos o que era útil e um aluno observou que os meios de transportes eram úteis, mas, em seguida, ele falou que ônibus eram úteis para alguns e para outros não.
Respondi, mesmo que para quem não usa ônibus, o ônibus continua útil, porque ele está tirando pelo menos 40 carros do transito, oras!
Martha
25 Feb 10 at 23:00
[…] pincéis! * O melhor post da semana é, sem terminar de zerar o GReader, do Mafra. Com o título Carros: uma ameaça ao convívio em Sociedade, ele não poupa imagens, vídeos e texto para demonstrar o que deveria ser óbvio, mas não é: ter […]
Achados na web 79 | Ladybug Brasil
26 Feb 10 at 19:09
Cara, me desculpe, mas seu texto é muito raso e parcial. Minha experiência com a leitura foi tão ruim que me motivou a escrever esse comentário. Não entendi os elogios que recebeu no twitter e em alguns comentários acima.
Franco
22 Sep 10 at 11:11